Fragmentos da história
Fragmentos da história [Língua Romana]
O Império de Roma não teria passado de uma conquista efêmera se se tivesse limitado a impor ao mundo, pela força, uma organização política e até mesmo leis. A sua verdadeira grandeza talvez resida mais naquilo que foi – e continua a ser – o esplendor espiritual. Foi ele que, no Ocidente, abriu imensas regiões a todas as formas de cultura e do pensamento e que, no Oriente, permitiu que os tesouros da espiritualidade e da arte helênica sobrevivessem e conservassem a sua virtude fecundante. Por vezes, pode ser tentador sonhar com um mundo do qual Roma estivesse ausente mas, vendo bem, isso só nos permitiria avaliar melhor o papel imenso que desempenhou na história do pensamento humano.
Entre todos os milagres que contribuíram para fazer de Roma o que ela foi, o mais surpreendente talvez tenha sido aquele que permitiu que a língua dos camponeses latinos se tornasse, em poucos séculos, um dos instrumentos de pensamento mais eficazes e mais duradouros que a humanidade jamais conheceu. Desta historia da língua latina, muitas páginas nos escapam. O paciente trabalho dos filólogos – esses arqueólogos da linguagem – restituiu-nos algumas delas e sabemos hoje que a língua latina, tal como a escreviam Cícero e Virgilio, é o resultado de uma longa evolução iniciada há milênios no próprio seio da comunidade indo-europeia, mas que se viu bruscamente acelerada entre o século VI e o século II a.e.c., quando a fala do rústico Lácio, onde se tinham misturado elementos de diversas origens, itálicos, etruscos, e talvez outros mais, recebeu a incumbência de exprimir as concepções de toda a espécie que lentamente tinham surgido no interior da cidade romana. Também sabemos que a língua escrita, a dos autores que, para nós, se tornaram clássicos, não é idêntica a que os Romanos falavam todos os dias: as regras e a própria estética do latim literário resultam de uma escolha consciente, de um trabalho voluntário que recusou mil facilidades oferecidas pela língua falada, que esta por vezes conservou e que surgem novamente nos textos tardios, quando as disciplinas se tornam menos estritas.
Uma das primeiras tarefas dos escritores latinos consistiu em atingir uma clareza perfeita e uma notável precisão do enunciado, não dando lugar a qualquer contestação. É surpreendente que os textos mais antigos que conservamos sejam formulas jurídicas, sem dúvida porque a lei foi o primeiro domínio em que se sentiu necessidade de assegurar a permanência da palavra e da frase. Mas também é verdade – a história da redação das Doze Tabuas mostra-o – que o primeiro trabalho incidiu sobre o enunciado oral, sendo a fórmula apresentada a memória antes de ser gravada na madeira ou no bronze. Ora, o enunciado oral que pretende ser memorável deve obedecer a leis, descobrir o ritmo da língua, submeter-se a repetições de palavras ou mesmo simplesmente sonoridades. Por muito profundamente que penetremos na língua latina, encontramos sempre essa preocupação com a formula encantatória (que não é necessariamente mágica) em que o pensamento se encerra segundo um ritmo monótono e se apóia simultaneamente na aliteração e na assonância, ou mesmo na rima. A primeira prosa latina, nos seus humildes primórdios, aproxima-se muito da poesia espontânea a que os Romanos chamavam carmen e que é, por vezes, “dança” da linguagem, por vezes gesto ritual de oferenda, repetição sedutora, ligação sonora que encerra o real. Entre estas duas necessidades – de precisão total, para não deixar escapar nada dessa realidade que se pretende abranger, e de ritmo -, a prosa não tarda a disciplinar-se, a sublinhar fortemente as articulações da frase, inicialmente simples cavilhas servindo de sutura, depois sinais de classificação que afetam os diferentes momentos da exposição, por fim verdadeiros instrumentos de subordinação que permitem construir frases complexas e hierarquizadas. Simultaneamente, o vocabulário enriquece-se; a fim de definir as noções, criam-se palavras novas, que a frase justapõe num leque de matizes. A riqueza do vocabulário, que Cícero usará amplamente, não é na língua latina uma exuberância gratuita, mas o resultado de um trabalho de análise que tem a ambição de não deixar nada na sombra e que, por desconfiança em relação as definições abstratas e as formulas gerais, enumera tanto quanto possível todos os aspectos de um objeto, de um ato ou de uma situação.
Neste esforço para apontar, sem equivoco, o valor de uma afirmação, a língua monta uma maquinaria delicada, com todas as peças: não basta enunciar um fato, também é preciso indicar em que medida aquele que fala assume esse enunciado, se lhe quer conferir uma objetividade plena e total, se, pelo contrário, se apresenta apenas como porta-voz de outro ou se se limita a evocar uma simples possibilidade. A forma do verbo utilizado mudará consoante os casos. Os gramáticos, depois, distinguiram um grande número de categorias: por exemplo, o modo “real”, o modo “potencial” (quando a possibilidade é concedida como pura visão do espírito), o modo “irreal” (quando o que é teoricamente possível se encontra, do ponto de vista daquele que fala, desmentido pela realidade). Haverá também todo o sistema do estilo indireto, que objetiva o enunciado tornando-o um objeto subordinado ao verbo introdutor, desligando-se do sujeito que fala, salvaguardando a possibilidade de exprimir os diferentes aspectos (temporais, modais, etc.) introduzidos pelo primeiro sujeito, aquele cujas palavras são transmitidas. Aquilo que, hoje, se apresenta aos jovens latinistas como um dédalo inextricável, dá provas de um maravilhoso instrumento de analise capaz de descobrir inflexões que escapam a muitas línguas modernas e impondo ao espírito distinções que o obrigam a pensar melhor.
Nesta evolução sintática, o exemplo das construções gregas não parece ter exercido uma influência apreciável. O que os gramáticos do século anterior consideravam helenismos pertence, de fato, na maior parte das vezes, à tendências próprias do latim. Os helenismos de sintaxe surgem muito tarde, quando a língua clássica atingira já a plena maturidade. Não acontece o mesmo com o vocabulário que desde muito cedo admitiu termos vindos do grego. Em Roma, o grego estava presente em toda a parte: comerciantes, desde o século VI, viajantes vindos da Itália Meridional, em breve escravos trazidos para o Lácio depois da conquista dos países gregos ou helenizados. Existiu, nessa Itália em que as raças se misturavam, um “sabir” italo-helênico que marcou a historia do latim. Por via popular (oral, mediata ou imediata) introduziram-se assim nomes de moedas, de utensílios domésticos, de termos técnicos trazidos pelos navegadores, pelos comerciantes, pelos soldados. Todos estes elementos foram rapidamente assimilados, incorporados profundamente na língua. Abundam em Plauto, cujo teatro se destinava ao público popular. Mas, depois das guerras púnicas, surgiria um novo problema, só um século mais tarde solucionado.
A chegada a Roma dos filósofos, depois da conquista da Macedônia, fora preparada, como dissemos, por um longo período durante o qual prosseguiu a helenização das elites romanas. É verdade que algumas famílias, de tradição rústica, opuseram uma séria resistência à invasão do pensamento grego, mas o próprio exemplo de Catão, o Censor, o mais ardente adversário do helenismo, mostra-nos bem que se tratava de uma resistência desesperada: Catão sabia grego, falava-o, ate o lia. É significativo que a primeira obra histórica consagrada a Roma tenha sido escrita – por um senador romano – em grego, na mesma época em que Plauto compunha as suas comédias. Nessa altura, a língua cultural ainda não é o latim, mas o grego; a prosa literária latina nasceu muito tempo depois de ter começado a poesia nacional. Os filósofos vindos em embaixada, em 155 a.e.c. não tiveram qualquer dificuldade em se fazer compreender por um vasto público ao qual falavam em grego e podia parecer que a literatura latina estava condenada a contentar-se com a expressão poética, cedendo ao grego os domínios do pensamento abstrato. Apesar deste sério handicap, os escritores romanos conseguiram, em poucas gerações, criar uma prosa latina capaz de rivalizar com a dos historiadores e filósofos helênicos. Apoiando-se nas conquistas já realizadas – em particular as da língua política moldada pela redação dos textos jurídicos e dos relatórios das sessões do Senado – não hesitaram em começar por redigir relatos históricos, para os quais o vocabulário tradicional era suficiente e que podiam beneficiar dos exemplos dados pelas epopéias nacionais compostas, no fim do século III, por Névio e Enio. É muito provável que o livro das Origens, escrito pelo próprio Catão em latim, devesse muito à Guerra Púnica do primeiro e aos Anais do segundo. Ao mesmo tempo, as exigências da vida política impunham aos homens de Estado a obrigação de falar em público: por ocasião dos complicados debates que se desenrolavam no Senado, quando se tornava necessário agir sobre a massa popular reunida diante dos Rostros ou ainda quando o orador devia defender uma causa no tribunal e persuadir um juri. Infelizmente, conservamos escassos fragmentos desta prosa latina do século II a.e.c. O único texto de Catão que está completo é o livro Sobre a Agricultura: a exposição, puramente técnica, não comporta a eloqüência nem os benefícios de um relato vivamente conduzido. No entanto, adivinha-se nesse mesmo texto e nos fragmentos dos discursos de Catão que conhecemos, que a prosa latina já adquiriu uma maturidade notável. É verdade que ainda apresenta uma certa rigidez; a frase é muitas vezes breve, cortante como nina fórmula de lei, as proposições justapõem-se paralelamente umas as outras em series intermináveis, mas, por vezes, a sua própria monotonia contém força e grandeza. A herança rítmica do carmer juntam-se às conquistas realizadas pela arte oratória, a necessidade de persuadir, começando por apresentar aos auditores todos os aspectos de um pensamento, resumindo-o depois numa breve formula susceptível de se gravar profundamente no espírito. Nesta prosa eloqüente já se unem as duas qualidades da frase ciceriana, a gravitas (a seriedade) e o número; a sua própria rigidez, semelhante a das estatuas arcaicas da arte helênica, contribui para dar uma impressão de autoridade: no tempo de Catão, o latim tornou-se verdadeiramente uma língua digna dos conquistadores do mundo.
Faltava anexar à prosa latina o domínio da especulação pura. Para tal, era necessário levar a língua a exprimir o abstrato, o que não deixava de apresentar graves dificuldades. O latim possuía todo um jogo de sufixos herdados do sistema indo-europeu, mas usava-os com moderação e geralmente para designar qualidades facilmente entendíveis, ainda muito próximas do concreto. O abstrato era-lhe praticamente estranho. Nestas condições, como traduzir na língua nacional os jogos dialéticos dos filósofos gregos? Os primeiros escritores que tentaram faze-lo estiveram prestes a renunciar. O desabafo de Lucrecio, queixando-se da pobreza da sua língua materna, ficou célebre; outras observações, mais sutis, de Cícero e de Sêneca sucedem-se ao poeta que decidira tornar acessível a um público latino o pensamento de Epicuro e de Demócrito. A própria noção de filosofia não respondia a nenhuma palavra da língua. Era precisa criar um dialeto novo copiando a própria forma dos vocábulos gregos, ou alterando-a. Os dois processos foram utilizados simultaneamente, mas com intenções e contextos diferentes. Cícero serve-se, por vezes, da palavra philosophia, mas quando pretende designar a técnica em si; em outras ocasiões, recorre a um equivalente já utilizado por Enio, e escreve sapientia – que já possui um significado na língua e não pode aplicar-se a especulação filosófica senão por uma transposição de sentido. Sapientia, para um romano, não era a dialética em busca de verdade, mas uma qualidade muito mais terra-a-terra, a do homem cheio de bom senso habituado a seguir pelo caminho mais curto, mas mais na sua conduta do que nos caminhos do conhecimento. Compreende-se a importância, para o próprio futuro da filosofia romana, desta transposição inicial. Na verdade, as palavras assim solicitadas mantinham a sua utilização habitual, as suas ligações semânticas, um peso, associações que não podiam cair subitamente e que inflectiam o pensamento. A sapientia continuou sempre a ser a ciência de regulação dos costumes, aquilo a que nós chamamos sabedoria, antes de ser arte de pensar. Outro exemplo não menos extraordinário é a história da palavra virtus, que serviu para traduzir o conceito grego de virtude. Enquanto os Gregos se serviam de um termo infinitamente mais intelectual, a palavra άρετή, que implica uma idéia de excelência, de perfeição, os Romanos empregaram um termo de ação que designa o poder do homem no seu esforço sobre si mesmo. A língua traiu assim a inflexão imposta ao pensamento helênico. Dir-me-ão que se trata mais do efeito de uma incompreensão da raça romana, incapaz de se guindar até ao pensamento puro, do que do resultado de um trabalho consciente sobre o vocabulário. Contudo, não podemos negar que os escritores, capazes de pensar e compor até mesmo tratados filosóficos em grego, de conversar demoradamente com os filósofos gregos que recebiam de boa vontade em suas casas, recorriam, quando se exprimiam em latim, a um vocabulário cujas insuficiências e traições não ignoravam, mas que julgavam mais apto a efetuar a necessária transposição para desenvolver um pensamento verdadeiramente romano.
Toda a literatura da época dominada pela figura de Cícero testemunha este trabalho sobre a língua, que é, ao mesmo tempo, gerador de um pensamento original. Criou-se, assim, todo um arsenal de conceitos, a partir do modelo dos Gregos, mas com variações importantes – e o curso da historia determinou que o pensamento ocidental herdasse não diretamente os arquétipos helênicos, mas a sua cópia latina. que não deixou de ter grandes conseqüências no futuro. O logos grego tornou-se, em Roma, ratio; o que era “palavra” passou a ser “cálculo” – e o contraste não está apenas nas palavras, está também na atitude intelectual que simbolizam.
005 – Fragmentos da história [Língua Romana]
(Império Romano) – Tim Cornell
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